Wednesday, July 19, 2006

Aprendiz de Viajante

Al Berto

"Um dia li num livro: «Viajar cura a melancolia».

Creio que, na altura, acreditei no que lia. Estava doente,

tinha quinze anos. Não me lembro da doença que me levara

à cama, recordo apenas a impressão que me causara, então,

o que acabara de ler.

Os anos passam - como se apagam as estrelas cadentes

- e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No

entanto, persiste em mim aquela estranha impressão de que

lera uma predestinação.

A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei

de viajar. Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares

e desertos, mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci

corpos que deambulavam pela vasta noite... Avancei sempre,

sem destino certo.

Tudo começou a seguir àquela doença.

Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti. Fui em

direcção ao mar. Segui a rebentação das ondas, apanhei

conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que

pude. Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha;

vi crepúsculos e noites sobre um rio, amei a existência.

Dormia onde calhava: no meio das dunas, enroscado

no tojo, como um animal; dormia num pinhal ou onde me

dessem abrigo, em celeiros, garagens abandonadas, uma

cama...

E quando regressei, regressei com a ânsia do eterno

viajante dentro de mim.

Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer

da vida, se despojou das coisas materiais e das tarefas

quotidianas. Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um

modo de vida. Caminha, assim, com a leveza de quem

abandonou tudo. Deixa o coração apaixonar-se pelas

paisagens enquanto a alma, no puro sopro da madrugada,

se recompõe das aflições da cidade.

A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o

que outros viajantes, ao passarem pelos mesmos lugares,

vêem. O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo, é

único, não se confunde com nenhum outro.

Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos, purifica.

Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil; e o corpo

reencontra a harmonia perdida - entre o homem e a terra.

O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e

a luz, os astros, as águas e a treva, os peixes, os pássaros

e as plantas. Aprendeu a nomear o mundo.

Separou com uma linha de água o que nele havia de

sedentário daquilo que era nómada; sabe que o homem

não foi feito para ficar quieto. A sedentarização

empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a alma -

estagna o pensamento.

Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da

linha de água. Vive ali, e canta - sabendo que a vida não

terá sido um abismo, se conseguir que o seu canto, ou

estilhaços dele, o una de novo ao Universo."

Al Berto, in O Anjo Mudo

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