Monday, March 19, 2007

Medo

Paranoiac-Astral Image by Salvador Dalí
...

Ando à volta de tudo isto e,

como quem se despede para sempre,

de costas para o vento e para o amor,

desço em direcção a um cais onde são

inúteis as palavras.

Bebo, fumo, sonho, e conheço bem essa dor

que vem do fundo,

dos vales assombrados onde a amargura

prepara as suas armas.

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Não há estrelas, astros, castiçais, nada a

não ser o medo,

nestes climas da alma.

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José Agostinho Baptista


Tuesday, March 06, 2007

Adeus

Woman with green eyes by Tamara de Lempicka
...
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
...
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
...
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
...
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
...
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
...
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
...
Adeus.
...
Eugénio de Andrade