Monday, April 30, 2007

Como quem escreve com sentimentos





Estou sujeito ao tempo sou este momento
perguntam-me quem fui e permaneço mudo
o tempo poisa-me nos ombros em relento
partiu no vento essa mulher e perdi tudo
...
Já não virá ninguém por muito que vier
em vão esperei a rosa da minha roseira
quando um pássaro sai dos olhos da mulher
é porque ela é de longe e não da nossa beira
...
Resta-me um sonho desconexo e desconforme
Na haste da camélia que o vento quebrou
jamais a vida branca como ela dorme
Eu era essa camélia e nunca mais o sou
...
A minha vida é hoje um sítio de silêncio
a própria dor se estreme é dor emudecida
que não me traga cá notícias nenhum núncio
porque o silêncio é o sinónimo da vida
...
O mundo para além dessa mulher sobrava
tudo vida vulgar tumultuária e cega
o brilho do olhar equilibrava a chuva
nas suas costas hoje toda a luz se apaga
...
Mulher que um golpe de ar me pôde arrebatar.
enfim não existia ou só ela existia
Asas que ela tivesse deixou-as queimar
e tê-la-á levado estranha ventania
...
Daqueles traços fisionómicos de pedra
não quero já ouvir a voz que às vezes vem
na calma destacada por um cão que ladra
Não há ninguém perto de mim sinto-me bem
...
Cada casa que roço é escura como um poço
se sou alguma coisa sou-o sem saber
sossego solitário sem mistério isso
talvez tivesse sido o que sempre quis ser
...
As flores vinham nela e era primavera
mas tanto a nomeei e tanto repeti
erros numa estratégia imprópria para ela
tamanho amor expus que cedo a consumi
...
A noite quando ao fim descer decerto há-de
ser certa solução. Foi há muito a infância
Ao tempo o que tu tens tu bem o sabes cede
estendo as mãos talvez te fique a inocência
...
A vida é uma coisa a que me habituei
adeus susto e absurdo e sobressalto e espanto
A infância é uma insignificância eu sei
e apenas por a ter perdido a amamos tanto
...
Estou sozinho e então converso com a noite
das palavras que nos subjugam nos submetem
As coisas passam e em vez delas é aceite
o nosso sistema de signos onde as metem
...
Esta minha existência assim crepuscular
devida àquela que é rastos destroços restos
acusa hoje alguma intriga consular
de quem não tem cabeça a comandar os gestos
...
Foi uma rosa rubra a autora desta obra
aberta e arrogante grácil flor do instante
que triunfante não há coisa que não abra
para ferir quem a viu e morrer de repente
...
E noite sou e sonho e dor e desespero
mero ser sórdido e ardido e encardido
mas já não tarda a abrir-se na manhã que espero
um arco com vitrais aos vendavais vedado
...
E embora a minha fome tenha o nome dela
e da água bebida na face passada
não peço nada à vida que a vida era ela
e que sei eu da vida sei menos que nada
...

Ruy Belo

Monday, April 23, 2007

Prefiro a derrota

(...)

Prefiro a derrota com o conhecimento da beleza das flores

que a vitória no meio dos desertos, cheia de cegueira da alma

a sós com a sua nulidade separada.

...

Bernardo Soares

Monday, April 16, 2007

Tudo Aqui

A Couple with Their Heads Full of Clauds by Salvador Dalí

...
Paro

...
E deixo-me mergulhar
No contorno difuso
Da misteriosa nuvem
Que me contempla
E me pergunta:
..............Pelo vento que não sinto
..............Pela forma que não tenho
..............Pelo caminho que não sigo...

...
Tudo aqui é estranho e longínquo,
Estas gentes não são mais
Nem menos que estas nuvens:
Diáfano cinzento carregado de silêncio...

...
Chove

...
E toda a gente foge
Das lágrimas que sente
Mas não pode...

...
Como querem que eu corra
Se os meus pés são esta lama
E minha cabeça uma masmorra?

...
Pedro Ferreira (2007)

Monday, April 02, 2007

Amor e nada mais

Portrait of Ruth Rivera by Diego Rivera
...
Oh tu, mais doce, mais interminável
que a doçura, namorada carnal
no meio das sombras: tu surges
de outros dias, enchendo de pesado pólen
a tua taça de delícia.
.........................Duma noite cheia
de ultrajes, duma noite como o vinho
desvairado, duma noite de púrpura oxidada,
desabei sobre ti como uma torre ferida,
e entre os pobres lençóis a tua estrela
palpitou contra mim, incendiando o céu.
...
Oh redes do jasmim, oh fogo físico
alimentado nesta nova sombra,
trevas que tocamos apertando
a cintura central, ferindo o tempo
com sanguinárias rajadas de espigas!
...
Amor e nada mais, no vazio
duma bolha, amor com ruas mortas,
amor, quando a vida já morreu,
já nos deixou, incendiando os recantos.
...
Mordi a mulher, afundei-me nela com todas
as minhas forças, entesourei cachos de uva
e avancei de beijo em beijo,
atado às carícias, amarrado
a esta gruta de cabelos frios,
a estas pernas percorridas por lábios:
faminto entre os lábios da terra,
devorando com lábios devorados.
...
Pablo Neruda
(A Estudante - 1923, in Canto General)