Tuesday, June 19, 2007
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Oscar Wilde gostava de dizer que era capaz de resistir a tudo, excepto à tentação. Esqueceu-se de dizer que há duas formas de tentação: uma é quando se é tentado e a outra (mais grave) é quando se é tentador. Há pessoas que simplesmente não têm culpa de serem tentadoras. Nestes casos, podemos dizer que não temos culpa de sermos tentados. Podemos, não podemos? Não podemos, pois não?
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A única tentação à qual não devemos resistir é à tentação, às vezes avassaladora, de sermos fiéis. Porquê? Porque é tão rara e temos de aproveitá-la. Não, mas a sério: há uma série de seis instruções para Portugueses e Portuguesas que acham difícil permanecer fiéis:
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1.ª Não pense nisso.
2.ª Está bem, pronto, pense noutra coisa.
3.ª Nessa não.
4.ª Não! Pior ainda!
5.ª Vá lá então...
6.ª Que se lixe!
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Os Portugueses não são assim muito fiéis. E não se julgue que são só os homens. Essa teoria nunca fez muito sentido. Se as mulheres são todas mais fiéis, como é que os homens estão a ser infiéis? Haverá alguma pequena minoria de ninfomaníacas militantes, as Destruidoras de Lares, que se encarregue sozinha de desviar todos os homens? Aliás os Portugueses são tão infiéis que inventaram várias bases para desculpar a infidelidade.
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1. NA BASE DO "FIEL A MIM MESMO".
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A base do "Fiel a mim mesmo" é preferida por 9 em cada 10 malandrecos. O malandreco começa por responder às acusações da namorada com as expressões convencionais, tipo "Fiel? Fiel é comida de cão". A namorada, sempre witty, responde que ele é pior que os cães; ele, genial, diz "Sou um cão, mas é de luxo, estás a ouvir ó chavaleca?" e o número continua até chegar à Hora da Verdade. Aí, finda a sessão de chalaça lusitana, ela quer mesmo saber se ele é fiel, sem figas, nem de dedos nem de língua. E ele jura que é fiel. E é, fiel a si mesmo, isto é, não anda para aí a enganar-se a si próprio - nem era capaz de uma coisa dessas.
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2. NA BASE DO "COMPENSA".
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A base do "Compensa" é mais difícil, mas é popular entre malandrecos mais inteligentes. Assenta no princípio da Beatriz e da Bernarda. Se calha estar na cama da Beatriz, quando era suposto estar na da Bernarda, é verdade que está a ser infiel à Bernarda, mas, por outro lado, está a ser fidelíssimo à Beatriz. Usemos os termos técnicos SPAC (por Saltar Para A Cueca) e POC (por Pôr Os Cornos). Ora quem SPAC de mais de uma pessoa, necessariamente POC a alguém, mas não se pode POC a todas as pessoas, precisamente porque se está sempre a SPAC de uma dessas pessoas. Assim, o malandreco raciocina: "Estou aqui a SPAC da Beatriz, e a Bernarda fica fula se sabe que eu lhe POC." É um ponto contra. Mas, enquanto está com a Beatriz, está a ser fiel a ela.
É um ponto a favor. Compensa.
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3. NA BASE CARTESIANA.
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É uma manha antiga, mas é espantoso como continua a ter aceitação entre nós. Consiste em ser-se semper fidelis no coração, na alma, na cabeça e em todos os outros sítios pouco à mão no que toca a beijinhos. Em contrapartida, a carne é fraca, não tem culpa, e do acém ou da vazia, não tem importância. "Sabes, - diz a Bernarda ao Tóino, - não tenho problemas em não te POC mentalmente, mas fisicamente nem sempre resisto". A Base Cartesiana também tem a versão "Sexo e Amor", mas essa está tão gasta que já nem pega no João Sebastião Bar às 5 da manhã - será, quando muito, uma questão de nostalgia entre quarentões com os copos («Ouve, Zé Maria, eu com o Nando não faço amor - faço sexo, não sei se estás a ver a diferença... Eu amor só faço contigo, compreende isso, por amor de Deus, e deixa-te lá de andar por ai a dizer que eu te ando a POC»).
A melhor reacção à Base Cartesiana é a Estocada Dom Pedro. Quando o cônjuge diz que «só o corpo» pecou porque o coração foi sempre fiel, basta dizer «Então está bem», pegar numa faca de cozinha, tirar a parte que interessa e deitar o resto corpo fora. Assunto resolvido.
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4. NA BASE DO "SEX APPEAL".
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Dizem-me que esta base experimenta actualmente um surto de popularidade. É a primeira da famosa série «Não Devias Ter Ciúmes, Devias Era Ter Pena», que coloca o infractor, o que POC à outra pessoa, na opsição de vitíma. Joana e Vasco estão os dois a confessar que POC um ao outro. «Mas porquê, Vasco?», pergunta Joana. «Mas porquê Joana?», pergunta Vasco. Aqui podem entrar na base do coitadinho («Estava na fossa, tu tinhas acabado de me dizer uma série de coisas... e atirei-me à primeira que vi, bem sabes que o facto de ter calhado a minha ex-namorada não tem nada a ver... ó Joana foi horrível... cada vez que lhe SPAC só me lembrava da tua cara»). Mas a Base do sex appeal é mais convincente: «Ó Vasco, tu não és mulher, não percebes - às vezes temos mesmo de nos certificarmos que continuamos a ser atraentes, até para nos sentirmos bem com quem estamos.» A Base do sex appeal faz com que POC pareça uma espécie de check-up. O melhor é mandar as pessoas que querem esses Chek-ups à... Caixa.
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5. NAS OUTRAS BASES.
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Quando as pessoas querem POC umas às outras, podem saltar de base em base. Os homens recorrem com frequência à Base do Rin-Tin-Tin, segundo a qual SPAC de toda a gente porque têm instintos muito animais que se despertam à mínima provocação. A mínima provocação pode ir, em muitos casos, à mera existência («Via-a na tabacaria a folhear a revista e fiquei maluco! A partir daí não me lembro de mais nada!»). Rugem, roem e cospem ossos, rosnam, rastejam e portam-se, de um modo geral, de um modo subcanino. (A melhor maneira de contrariar a Base do Rin-Tin-Tin é a Contra-Base «Já Vais Ver Como Te Mordem».)
A verdade é que existem graus de POC, desde POC só no pensamento, o POC Mental, até às grandes infidelidades de massas, o equivalente em POC aos massacres. O POC Mental já é pecado, claro, mas isso não deve servir para POC a quem não é suposto POC, na Base do «Perdido por Cem, Perdido por Mil». A prudência aconselha que as pessoas sejam realmente fiéis uma à outra, porque o prazer que dá a quem POC é sempre muito mais pequeno que o mal que faz à outra pessoa. POC mentalmente o que quiser, mas quanto às vias de facto, aconselha-se uma Fidelidade Castro, ditatorial e determinada, na Base Cubana do «Se me POC, castro-te».
(...)
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Miguel Esteves Cardoso
in "Os Meus Problemas"
Tuesday, June 05, 2007
Elipses absurdas e distantes
Formula of the Universe by Pavel Filonov
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Todos os movimentos da sensibilidade, por agradáveis que sejam, são sempre interrupções de um estado, que não sei em que consiste, que é a vida íntima dessa própria sensibilidade. Não só as grandes preocupações, que nos distraem de nós, mas até as pequenas arrelias, perturbam uma quietação a que todos, sem saber, aspiramos.
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Vivemos quase sempre fora de nós, e a mesma vida é uma perpétua dispersão. Porém, é para nós que tendemos, como para um centro em torno do qual fazemos, como os planetas, elipses absurdas e distantes.
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Bernardo Soares (217)