Wednesday, April 20, 2016

Primavera a la vista

Primavera em Flor by Masaharu Sugawara


Pulida claridad de piedra diáfana,
lisa frente de estatua sin memoria:
cielo de invierno, espacio reflejado
en otro más profundo y más vacío.

El mar respira apenas, brilla apenas.
Se ha parado la luz entre los árboles,
ejército dormido. Los despierta
el viento con banderas de follajes.

Nace del mar, asalta la colina,
oleaje sin cuerpo que revienta
contra los eucaliptos amarillos
y se derrama en ecos por el llano.

El día abre los ojos y penetra
en una primavera anticipada.
Todo lo que mis manos tocan, vuela.
Está lleno de pájaros el mundo.

Octavio Paz



Friday, November 13, 2015

Ithaca

The Cyclops by Odilon Redon

As you set out on the way to Ithaca
hope that the road is a long one,
filled with adventures, filled with understanding.
The Laestrygonians and the Cyclopes,
Poseidon in his anger: do not fear them,
you’ll never come across them on your way
as long as your mind stays aloft, and a choice
emotion touches your spirit and your body.
The Laestrygonians and the Cyclopes,
savage Poseidon; you’ll not encounter them
unless you carry them within your soul,
unless your soul sets them up before you.

Hope that the road is a long one.
Many may the summer mornings be
when—with what pleasure, with what joy—
you first put in to harbors new to your eyes;
may you stop at Phoenician trading posts
and there acquire fine goods:
mother-of-pearl and coral, amber and ebony,
and heady perfumes of every kind:
as many heady perfumes as you can.
To many Egyptian cities may you go
so you may learn, and go on learning, from their sages.

Always keep Ithaca in your mind;
to reach her is your destiny.
But do not rush your journey in the least.
Better that it last for many years;
that you drop anchor at the island an old man,
rich with all you’ve gotten on the way,
not expecting Ithaca to make you rich.

Ithaca gave to you the beautiful journey;
without her you’d not have set upon the road.
But she has nothing left to give you any more.

And if you find her poor, Ithaca did not deceive you.
As wise as you’ll have become, with so much experience,
you’ll have understood, by then, what these Ithacas mean.

Konstantinos Kavafis (C. P. Cavafy)

Tuesday, June 10, 2014

Noite branca



Deitado num comboio fantasma

           entre tu e eu

         no meio da alma

Perdido numa noite sem fim

numa escuridão cheia de luz

Acordo dum sonho teu

e sinto a ausência das tuas palavras

- pura ilusão que me seduz;

do brilho profundo do teu olhar

da tua melodia para mim,

feita para me despertar....


Pedro Ferreira

Tuesday, May 06, 2014

Into that heaven of freedom

Legend of the seafarer's wife by Anjolie Ela Menon


Where the mind is without fear and the head is held high;

Where knowledge is free;

Where the world has not been broken up into fragments by narrow domestic walls;

Where words come out from the depth of truth;

Where tireless striving stretches its arms towards perfection;

Where the clear stream of reason has not lost its way into the dreary desert sand of dead habit;

Where the mind is led forward by thee into ever-widening thought and action -

Into that heaven of freedom, my Father, let my country awake.


Rabindranath Tagore

Friday, December 20, 2013

Sobre o caminho

Hommage à Apollinaire by Marc Chagall

Nada.

Nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra.

Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença.

Não colecciones dejectos o teu destino és tu.

Despe-te
não há outro caminho.


Eugénio de Andrade

Friday, May 17, 2013

O Relógio

Clock with Blue Wing by Marc Chagall


Os chineses vêem as horas que são nos olhos dos gatos. Um dia, um missionário passeando por um subúrbio de Nanquim, apercebeu-se que se tinha esquecido do relógio, e perguntou a uma criança que horas eram.

O garoto do Império Celeste hesitou primeiro; depois, mudando de parecer, respondeu: Eu já lhe digo. Pouco depois reapareceu trazendo nos braços um gato muito gordo, e fitando-o no alvo dos olhos afirmou sem hesitar: Ainda não é meio-dia. O que era verdade.

Por mim, se me debruço sobre a linda Féline, a tão bem baptizada, que é ao mesmo tempo a honra do seu sexo, o orgulho do meu coração e o perfume do meu espírito, quer seja de noite, quer seja de dia, em plena luz ou na sombra opaca, no fundo dos seus olhos adoráveis eu vejo sempre distintamente as horas, sempre a mesma hora, uma hora vasta, solene e grande como o espaço, sem divisão em minutos ou segundos - uma hora imóvel que os relógios não marcam, e no entanto, leve como um suspiro, rápida como um golpe de vista.

E se qualquer importuno me viesse perturbar enquanto o meu olhar repousa sobre esse delicioso mostrador, se qualquer génio malévolo e intolerante, qualquer demónio me viesse perguntar: Que estás olhando com tanto interesse? Acaso lá vês as horas, mortal pródigo e ocioso?, eu responderia sem hesitar: Sim, vejo as horas. Agora é a Eternidade!


Charles Baudelaire

Sunday, January 20, 2013

O verso de uma onda

Blobs grow in beloved gardens by Hundertwasser

A vida é um sonho
uma estrela no infinito
a corrente de um rio
o verso de uma onda
que morre sem perguntar
quando à traição nos acorda

Pedro Ferreira (2008)

Sunday, October 14, 2012

Dos cuerpos

Two Nudes in the Forest by Frida Kahlo


Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos olas
y la noche es océano.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos piedras
y la noche desierto.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces raíces
en la noche enlazadas.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces navajas
y la noche relámpago.

Dos cuerpos frente a frente
son dos astros que caen
en un cielo vacío.



Octavio Paz

Friday, July 27, 2012

Se...

Facing The Light by De Es Schwertberger


Se tu podes impor a calma, quando aqueles
Que estão ao pé de ti a perdem, censurando
A tua teimosia nobre de a manter.

Se sabes aguardar sem ruga e sem cansaço.
Privar com Reis continuando simples,
e na calúnia não recorres à infâmia
Para com arma igual e em fúria responder,
- Mas não aparentar bondade em demasia
Nem presumir de sábio ou pretender
Manifestar excesso de ousadia, -

Se o sonho não fizer de ti um escravo
E a luz do pensamento não andar
Contigo no domínio do exagerado,

Se encaras o triunfo ou a derrota
Serenamente, firme, e reforçado
Na coragem que é necessário ter
Para ver a verdade atraiçoada,
Caluniada, espezinhada, e ainda
Os nossos ideais por terra, - Mas erguê-los
De novo em mais profundos alicerces

E proclamar com alma essa verdade!,
Se perdes tudo quanto amealhaste
E voltas ao princípio sem um ai,
Um lamento, uma lágrima, e sorrindo
Te debruças sobre o coração
Unindo outras reservas à Vontade
Que quer continuar, e prosseguindo
Chegar ao infinito da razão,

Se a multidão te ouvir entusiasmada
E a virtude ficar no seu lugar,

Se amigos e inimigos não conseguem
Ofender-te, e se quantos te procuram
Para estar com o teu esforço não contarem
Uns mais do que outros, - olhas-os por igual!,

Se podes preencher esse minuto
Com sessenta segundos de existência
No caminho da vida percorrido
Embora essa existência seja dura
À força das tormentas que a consomem,
Bendita a tua essência, a tua origem
- O Mundo será teu,
E tu serás um Homem!


Rudyard Kipling
(Versão portuguesa de António Botto)

Friday, March 30, 2012

Humility is endless

The Course of Empire: Desolation by Thomas Cole


What is the late November doing
With the disturbance of the spring
And creatures of the summer heat,
And snowdrops writhing under feet
And hollyhocks that aim too high
Red into grey and tumble down
Late roses filled with early snow?
Thunder rolled by the rolling stars
Simulates triumphal cars
Deployed in constellated wars
Scorpion fights against the Sun
Until the Sun and Moon go down
Comets weep and Leonids fly
Hunt the heavens and the plains
Whirled in a vortex that shall bring
The world to that destructive fire
Which burns before the ice-cap reigns.


That was a way of putting it - not very satisfactory:
A periphrastic study in a worn-out poetical fashion,
Leaving one still with the intolerable wrestle
With words and meanings. The poetry does not matter.
It was not (to start again) what one had expected.
What was to be the value of the long looked forward to,
Long hoped for calm, the autumnal serenity
And the wisdom of age? Had they deceived us,
Or deceived themselves, the quiet-voiced elders,
Bequeathing us merely a receipt for deceit?
The serenity only a deliberate hebetude,
The wisdom only the knowledge of dead secrets
Useless in the darkness into which they peered
Or from which they turned their eyes. There is, it seems to us,
At best, only a limited value
In the knowledge derived from experience.
The knowledge inposes a pattern, and falsifies,
For the pattern is new in every moment
And every moment is a new and shocking
Valuation of all we have been. We are only undeceived
Of that which, deceiving, could no longer harm.
In the middle, not only in the middle of the way
but all the way, in a dark wood, in a bramble,
On the edge of a grimpen, where is no secure foothold,
And menaced by monsters, fancy lights,
Risking enchantment. Do not let me hear
Of the wisdom of old men, but rahter of their folly,
Their fear of fear and frenzy, their fear of possession,
Of belonging to another, or to others, or to God.
The only wisdom we can hope to acquire
Is the wisdom of humility: humility is endless.

The houses are all gone under the sea.

The dancers are all gone under the hill.


T.S.Eliot
(East Coker II - "Four Quartets")

Sunday, January 08, 2012

In my beginning is my end

Venus and Cupid by Agnolo Bronzino


In my beginning is my end. In succession
Houses rise and fall, crumble, are extended,
Are removed, destroyed, restored, or in their place
Is an open field, or a factory, or a by-pass.
Old stone to new building, old timber to new fires,
Old fires to ashes, and ashes to the earth
Which is already flesh, fur and faeces,
Bone of man and beast, cornstalk and leaf.
Houses live and die: there is a time for building
And a time for living and for generation
And a time for the wind to break the loosened pane
And to shake the wainscot where the field-mouse trots
And to shake the tattered arras woven with a silent motto.

In my beginning is my end. Now the light falls
Across the open field, leaving the deep lane
Shuttered with branches, dark in the afternoon,
Where you lean against a bank while the van passes,
And the deep lane insists on the direction
Into the village, in the electric heat
Hypnotised. In a warm haze the sultry light
Is absorbed, not refracted, by grey stone.
The dahlias sleep in the empty silence.
Wait for the early owl.

In that open field
If you do not come too close, if you do not come too close,
On a summer midnight, you can hear the music
Of the weak pipe and the little drum
And see them dancing around the bonfire
The association of man and woman
In daunsinge, signifying matrimonie -
A dignified and commodiois sacrament.
Two and two, necessarye conjunction,
Holding eche other by the hand or the arm
Whiche betokeneth concorde. Round and round the fire
Leaping through the flames, or joined in circles,
Rustically solemn or in rustic laughter
Lifting heavy feet in clumsy shoes,
Earth feet, loam feet, lifted in country mirth
Mirth of those long since under earth
Nourishing the corn. Keeping time,
Keeping the rhythm in their dancing
As in their living in the living seasons
The time of the seasons and the constellations
The time of milking and the time of harvest
The time of the coupling of man and woman
And that of beasts. Feet rising and falling.
Eating and drinking. Dung and death.

Dawn points, and another day
Prepares for heat and silence. Out at sea the dawn wind
Wrinkles and slides. I am here
Or there, or elsewhere. In my beginning.


T.S. Eliot
(East Coker I - "Four Quartets")

Thursday, February 24, 2011

Sei que vou atingir o alvo

Sagittarius by Steel Eyes


Eu vou morrer: há esta tensão como a de um arco prestes a disparar a flecha. Lembro-me do signo Sagitário: metade homem e metade animal. A parte humana em rigidez clássica segura o arco e flecha. O arco pode disparar a qualquer instante e atingir o alvo. Sei que vou atingir o alvo.

Clarice Lispector

Friday, December 31, 2010

Uma noite

Maze by James Jean


Uma noite - quando já for grande - quero ser pequenina
e absorver as cores de sempre com o assombro alaranjado da primeira vez
Hoje é a noite

Uma noite vou para a rua rasgar o anonimato espesso da cidade, desperta-la para o encontro,
eternizar num gesto o "Senhor do Adeus"
Hoje é a noite

Uma noite vou andar de baloiço para o parque, esquecer se o que fui é o que quero ser
e encharcar de frio os pulmões
Hoje é a noite

Uma noite começo a fazer dieta das minhas 30.785 necessidades e passo a alimentar-me,
sem restrições, sem racionalizações, apenas e só do verbo dar-me-aos-outros
Hoje é a noite

Uma noite deixo de fazer planos para o futuro; como quem faz a lista do supermercado
e vive à procura das melhores promoções: de sonhos pré-cozinhados,
de afectos ultra-congelados, do sal dos dias às prestações
Hoje é a noite

Uma noite ponho a tocar, em versão loop, a música Haja o que houver
haja o que houver só saio do meu terraço interior quando já não tiver medo de haja o que houver
Hoje é a noite

Uma noite caminho - sem medo - o chão do fracasso;
e - lavrando com os pés a alma descalça - seguirei em frente
Hoje é a noite

Uma noite desligo computadores, temores, rancores, abismos interiores
e vou brincar com o Príncipe da Paz... até ser dia
Hoje é a noite

Uma noite deslizo para o silêncio; respiro tudo
e abraço cada um e o universo inteiro ao mesmo tempo
Hoje é a noite

Uma noite fixo um post-it, junto ao peito, junto à pele, a dizer em letras pequeninas:
Deus ama-me tal como sou. Do que é que estou à espera para O amar tal como É?
Hoje é a noite

Uma noite sento-me à beira do tempo e seduzo-o a demorar-se na percussão das conversas,
no timbre da compota a fervilhar, no odor do teu abraço
Hoje é a noite

Uma noite, todas as noites se fundirão no meu corpo
e, nua de mim, mergulho no mistério da escada de rubi
Hoje é a noite

Filipa Roncon (2010)

Wednesday, October 13, 2010

Horizonte

Clouds, Birds, Moon, Venus by Isaac Gutiérrez Pascual


O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.

Fernando Pessoa

Wednesday, September 15, 2010

Naufrágio encantado

The Seducer by René Magritte

Feliz o homem
Que no momento do naufrágio
Confiante sorri
Entregando-se ao abraço do oceano
De possibilidades que o traga;
Consciente da certeza de encontrar
O canto e o colo d'uma sereia.

Nathalie Barcellos (2010)

Thursday, August 05, 2010

We are spiritual beings

by Yvonne McGillivray

...

We are not human beings having a spiritual experience.

We are spiritual beings having a human experience.

...

Pierre Teilhard de Chardin

Monday, June 14, 2010

Amar



Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave
de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura
nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede
infinita.


Carlos Drummond de Andrade

Wednesday, April 28, 2010

Só querendo não mais que não querer

L'Avenir des statues by René Magritte


Baço espelho de céu e mar e terra
e centelha não mais que reflectida
do fogo eterno que transmite a vida
e pura vela ao todo me desferra

não desisto de píncaros de serra
e não temo a dureza da subida
pois feita de abandono toda a lida
com prémio de conquista que desterra

só querendo não mais que não querer
pronto a toda a aventura que nem sei
morto mesmo ao desejo de morrer

renascendo na vida para ser
sem nenhuma prisão e só a lei
de não ter não ser tido e não me ter.

Agostinho da Silva

Wednesday, March 17, 2010

Uma Faca nos Dentes

Reconfiguration IV by Peter Gric


O MAIS BELO ESPECTÁCULO DE HORROR SOMOS NÓS.
Este rosto com que amamos, com que morremos, não é nosso; nem estas cicatrizes frescas todas as manhãs, nem estas palavras que envelhecem no curto espaço de um dia. A noite recebe as nossas mãos como se fossem intrusas, como se o seu reino não fosse pertença delas, invenção delas. Só a custo, perigosamente, os nossos sonhos largam a pele e aparecem à luz diurna e implacável. A nossa miséria vive entre as quatro paredes, cada vez mais apertadas, do nosso desespero. E essa miséria, ela sim verdadeiramente nossa, não encontra maneira de estoirar as paredes. Emparedados, sem possibilidade de comunicação, limitados no nosso ódio e no nosso amor, assim vivemos. Procuramos a saída - a real, a única - e damos com a cabeça nas paredes. Há então os que ganham a ira, os que perdem o amor.

Já não há tempo para confusões - a Revolução é um momento, o revolucionário todos os momentos. Não se pode confundir o amor a uma causa, a uma pátria, com o Amor. Não se pode confundir a adesão a tipos étnicos com o amor ao homem e à liberdade. NÃO SE PODE CONFUNDIR! Quem ama a terra natal fica na terra natal; quem gosta do folclore não vem para a cidade. Ser pobre não é condição para se ganhar o céu ou o inferno. Não estar morto não quer forçosamente dizer que se esteja vivo, como não escrever não equivale sempre a ser analfabeto. Há mortos nas sepulturas muito mais presentes na vida do que se julga e gente que nunca escreveu uma linha que fez mais pela palavra que toda uma geração de escritores.

A acção poética implica: para com o amor uma atitude apaixonada, para com a amizade uma atitude intransigente, para com a Revolução uma atitude pessimista, para com a sociedade uma atitude ameaçadora. As visões poéticas são autónomas, a sua comunicação esotérica.

Os profetas, os reformistas, os reaccionários, os progressistas arregalarão os olhos e em seguida hão-se fechá-los de vergonha. Fechá-los como têm feito sempre, afinal, e em seguida mergulharem nas suas profecias. Olharem para a parte inferior da própria cintura e em seguida fecharem os olhos de vergonha. Abandonarem-se desenfreadamente à carpintaria das suas tábuas de valores, brandirem-nas por cima das nossas cabeças como padrões para a vida, para a arte, para o amor e em seguida fecharem os olhos de vergonha às manifestações mais cruéis da vida, da arte e do amor.

MAS NÃO IMPORTA, PORQUE EU SEI QUE NÃO ESTOU SOZINHO no meu desespero e na minha revolta. Sei pela luz que passa de homem para homem quando alguém faz o gesto de matar, pela que se extingue em cada homem à vista dos massacres, sei pelas palavras que uivam, pelas que sangram, pelas que arrancam os lábios, sei pelos jogos selvagens da infância, por um estandarte negro sobre o coração, pela luz crepuscular como uma navalha nos olhos, pelas cidades que chegam durante as tempestades, pelos que se aproximam de peito descoberto ao cair da noite - um a um mordem os pulsos e cantam - sei pelos animais feridos, pelos que cantam nas torturas.

Por isso, para que não me confundam nem agora nem nunca, declaro a minha revolta, o meu desespero, a minha liberdade, declaro tudo isto de faca nos dentes e de chicote em punho e que ninguém se aproxime para aquém dos mil passos

EXCEPTO TU MEU AMOR EXCEPTO TU
MEU AMOR

minha aranha mágica agarrada ao meu peito
cravando as patas aceradas no meu sexo
e a boca na minha boca
conto pelos teus cabelos os anos em que fui criança
marco-os com alfinetes de ouro numa almofada branca
um ano................dois anos................um século

agora um alfinete na garganta deste pássaro
tão próximo e tão vivo
outro alfinete........o último........o maior
no meu próprio plexo

MEU AMOR
conto pelos teus cabelos os dias e as noites
e a distância que vai da terra à minha infância
e nenhum avião ainda percorreu
conto as cidades e os povos os vivos e os mortos
e ainda ficam cabelos por contar
anos e anos ficarão por contar

DEFENDE-ME ATÉ QUE EU CONTE
O TEU ÚLTIMO CABELO


António José Forte

Wednesday, December 30, 2009

Caminante no hay camino

A Graceful Arc by Tony Hallas


Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
...
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
...
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
...
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.
...
...
António Machado

Friday, October 23, 2009

Quiero un amor feroz de garra y diente

Lionesse by Fred Weidmann

Quiero un amor feroz de garra y diente
Que me asalte a traición a pleno día
Y que sofoque esta soberbia mía
este orgullo de ser todo pudiente.

Quiero un amor feroz de garra y diente
Que en carne viva inicie mi sangría
A ver si acaba esta melancolía
Que me corrompe el alma lentamente.

Quiero un amor que sea una tormenta
Que todo rompe y lo renueva todo
Porque vigor profundo lo alimenta.

Que pueda reanimarse allí mi lodo,
Mi pobre lodo de animal cansado
Por viejas sendas de rodar hastiado.


Alfonsina Storni

Tuesday, October 06, 2009

O homem é uma crisálida que se lembra

Neglected EightyEight Butterfly by Joel Sartore

Não somos mais, na vida de ontem e na de hoje, do que as sucessivas metamorfoses, diferentemente adaptadas, do mesmo ser astral.
O homem é uma crisálida que se lembra.

Mário de Sá-Carneiro

Tuesday, September 15, 2009

para ouvir-te sonhar

Old Municipal Pool that used to sit on Mozambique Island by Mansir Petrie
...

Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada
...
alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler
...
alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios
...
alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar
...
...
António José Forte

Tuesday, July 21, 2009

o lugar do morto

Melancholy by Edvard Munch
...
...
ao teu lado, no lugar do morto, enquanto
conduzes a conversa a uma frase sem
preparação. chegámos tarde à praia,
como a quase tudo. o vento levanta o
pó do parque de estacionamento e não
saímos do carro. não sei a resposta certa
e por isso represento mal o meu papel secundário.
limito-me a ficar em silêncio, onde
sempre me senti mais confortável.
um lugar sombrio, discreto, abrigado
e ainda assim, segundo dizem, o mais perigoso.
...
...
Tiago Araújo