Sunday, November 12, 2006

Interminável


Olhar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
...
Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.
...
Ver no dia ou no ano um símbolo
Dos dias do homem e dos seus anos,
Converter o ultraje dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,
...
Ver na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, tal é a poesia,
Que é imortal e pobre. A poesia
Retorna como a aurora e o ocaso.
...
Às vezes, pelas tardes uma cara
Nos olha desde o fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
...
Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao avistar sua Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade, não de prodígios.
...
Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.
...
Jorge Luis Borges
("Arte Poética", in "O Fazedor")

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